Artigo | A cidade que eles querem

A pauta urbana vive mais um momento importante em Curitiba este ano: a revisão da lei de zoneamento. Agora é necessário consolidar todo o debate que foi feito nos últimos anos, com o detalhamento das diretrizes do Plano Diretor.

A Frente Mobiliza Curitiba, criada para acompanhar e incidir na revisão do Plano Diretor, compreende que um processo só pode ser participativo quando há acesso adequado à informação e a espaços oportunos para debate e deliberação.

A gestão pública de Curitiba ainda sofre para incorporar processos participativos efetivos na dinâmica da elaboração e execução de políticas públicas. Na área do planejamento urbano essa dificuldade é agravada por uma tradição centrada no órgão municipal de planejamento – o Instituto de Pesquisa Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC), que atua com pouca transparência e abertura democrática.

Na audiência pública realizada no último dia 17 para debater a lei de zoneamento, evidenciou-se a limitação do processo participativo proposto para essa etapa. As consultas serão feitas somente da forma online até o dia 15 de maio, não sendo promovidos debates ou formas mais coletivas e ampliadas de participação popular.

Para reforçar a necessidade de debate constante sobre a cidade e sobre os temas que envolvem o zoneamento, a Frente Mobiliza Curitiba lança neste período de revisão da lei uma série de textos e artigos que visam trazer conteúdo crítico ao debate.

O primeiro artigo da série vem como uma necessidade de ofertar crítica urgente à consulta online conduzida pelo IPPUC. A análise partiu do processo de revisão do Plano Diretor, muito bem explicitada em artigo de Maria Eugênia Trombini, publicado no livro O Mito do Planejamento Urbano Democrático: reflexões a partir de Curitiba. Confira:

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A cidade que eles querem

Maria Eugenia Trombini*

Em março de 2014, na audiência pública que inaugurou o processo de revisão do Plano Diretor de Curitiba, o IPPUC disse pretender “a formulação de um Plano Diretor viável, sustentável e condizente com os anseios da sociedade”. Sujeitar a elaboração do Plano que disciplina o planejamento urbano da cidade nos próximos 10 anos ao controle social não reflete uma preferência do Instituto, mas uma exigência legal imposta à revisão do Plano Diretor. O Estatuto da Cidade é a lei federal que estabelece, em seu artigo 40, parágrafo 4º, a obrigatoriedade do Executivo e Legislativo municipais garantirem os seguintes pontos no processo de elaboração do Plano Diretor e na fiscalização de sua implementação:

I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade;

II – a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos;

III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos.

Esse artigo foi mencionado na apresentação de slides do IPPUC exibida na audiência inaugural. Nessa oportunidade, o Instituto nomeou o modelo para elaboração do Plano Diretor de “A Cidade que Queremos”, idealizado como um “projeto criado a partir da visão conjunta da comunidade”.

Ainda sobre a exigência da participação popular, outra legislação incluída no documento exibido na primeira audiência pública do processo de revisão foi o artigo 79 da lei orgânica de Curitiba, o qual prevê que o município, na sua atuação, atenderá aos princípios da democracia participativa.

Para alcançar o objetivo de tornar a revisão do Plano Diretor mais participativa, na mesma audiência pública foi lançada uma “plataforma digital de participação” dentro do site do IPPUC. Nela, a sociedade encontraria um espaço para apresentar propostas e receberia um retorno dos técnicos responsáveis pela condução do processo. As contribuições foram divididas por temas, sendo eles: 1) Cultura; 2) Desenvolvimento Econômico; 3) Desenvolvimento Social; 4) Estrutura Urbana; 5) Gestão Democrática; 6) Habitação; 7) Instrumentos Política Urbana; 8) Meio Ambiente; 9) Metodologia da Revisão do Plano Diretor 2014; 10) Mobilidade e Transporte; 11) Região Metropolitana; 12) Segurança; e 13) Zoneamento e Uso do Solo. Ao final, foram registradas 1.056 contribuições da sociedade civil, exibidas na página web com o nome do proponente, a sugestão e a resposta do órgão.

A iniciativa foi elogiada pelo prefeito, conforme consta do material elaborado pelo IPPUC e exibido na audiência inaugural:

Durante esse período, as pessoas poderão encaminhar idéias, críticas, duvidas e sugestões de acordo com os temas que estão em análise na Revisão do Plano Diretor. “As contribuições dos cidadãos estarão disponíveis para consulta e poderão ser visualizadas por todos que acessarem o hotsite. E todas as participações serão analisadas e respondidas pelos técnicos.

Apesar do período de elaboração do Plano Diretor pela Prefeitura ter se encerrado com a entrega do projeto de lei à Câmara Municipal, a plataforma continua no ar e pode ser acessada no seguinte link: http://www.curitiba.pr.gov.br/conteudo/acompanhe-sua-contribuicao/1927. Um dos defeitos do site é a ausência de referência à metodologia adotada para a análise das contribuições. A página se limita a dividi-las de acordo com os eixos temáticos, deixando de esclarecer como seria feito o processamento das propostas apresentadas.

Recorrendo a outra fonte, a Cartilha disponibilizada pelo IPPUC, as contribuições da sociedade civil seriam analisadas de acordo com a seguinte metodologia:

MB

Em nenhum momento foi esclarecido qual o critério da composição dos grupos de trabalho, ou a metodologia adotada dentro deles, apenas se soube que técnicos da Prefeitura se encarregariam das avaliações.

De todos os temas abertos às propostas, a presente pesquisa se detém àquele da gestão democrática. Antes de analisar o conteúdo das contribuições, é importante resgatar o que o IPPUC entende por “gestão democrática”. Na audiência pública inaugural do processo de revisão do Plano Diretor, a apresentação oficial continha a seguinte definição para o conceito em apreço: “Estabelecer uma relação entre a Administração Pública e a população, construída com base na democracia participativa e na cidadania, assegurando o controle social, em busca da cidade sustentável.” Ainda sobre o mesmo tema, a cartilha elaborada pelo IPPUC indicava como desafio:

Como construir um processo de gestão democrática no planejamento da cidade, tendo como base a revisão do Plano Diretor, que se encontra em andamento, considerando as organizações existentes em todas as instâncias de participação da sociedade civil e dos segmentos da sociedade?

Quando o processo de revisão coordenado pela Prefeitura estava quase concluído, o IPPUC apresentou o projeto de lei do Plano Diretor à Plenária Expandida do Concitiba. Nesse momento, o Instituto elogiou a participação popular, apresentando, para tanto, os seguintes princípios da gestão democrática de Curitiba:

  • Transparência no acesso à informação de interesse público;
  • Incentivo à participação popular;
  • Integração entre poder público municipal e população na gestão da cidade.

Esses três princípios se desdobrariam nas diretrizes gerais da gestão democrática abaixo transcritas:

  • Valorizar o papel da sociedade civil organizada e do cidadão como partícipes ativos e colaboradores, cogestores e fiscalizadores das atividades da administração pública;
  • Ampliar e promover a interação da sociedade com o poder público;
  • Garantir o funcionamento das estruturas de controle social;
  • Promover formas de participação e organização, ampliando a representatividade social.

A partir dessa exposição, é possível estudar as 71 contribuições registradas no tema da Gestão democrática da plataforma digital do hotsite do Plano Diretor.

A escolha dessas contribuições como amostra se deve ao fato de que as respostas dadas pelo IPPUC contrariam a afirmação do mesmo Instituto de que o processo de revisão do Plano Diretor de 2014 teria sido amplamente participativo. Isso porque, embora assegurar espaços de participação represente um avanço relativamente a um período no qual nem o espaço era viabilizado, criar uma plataforma digital de participação e geri-la da forma como o fizeram não é suficiente para a efetivação da gestão democrática.

Conforme será demonstrado, a metodologia aplicada é tal que o objetivo dos técnicos é convencer o contribuinte de que sua sugestão ora já está contemplada ora não merece ser considerada no “Plano do IPPUC”. Esse é o caso da contribuição abaixo:

MB2

A mera referência ao portal de transparência da Prefeitura não resolve a proposta de criação de um portal sobre a gestão urbana, informando sobre as questões fundiárias e obras públicas tal qual sugerido. Também não foi respondido o questionamento sobre a autoaplicabilidade do Plano e a necessidade de se estabelecerem prazos para eventual regulamentação.
Nessa visão bipartida entre o certo e o errado, os técnicos da Prefeitura se mantêm na defensiva e tratam o conteúdo do Plano Diretor como algo rígido, sem margem para flexibilização. A contribuição abaixo transcrita e a resposta mostram a interpretação excessivamente restrita dada pelo órgão técnico:

MB3

Note-se que não foi perguntado quem seria o responsável pela gestão do Plano Diretor, mas se essa lei municipal contempla um mecanismo de autogestão; entretanto, a resposta nomeou o próprio IPPUC como o “gestor do Plano Diretor”. A afirmação acima se distancia da postura da audiência inaugural, quando um dos destaques exibidos na apresentação dizia:
É competência do Poder Executivo desenvolver a política urbana, coordenando, entre outros fatores, as ações de elaboração ou revisão do Plano Diretor Municipal, de forma compartilhada, encaminhando, ao final, o respectivo Projeto de Lei que o aprova.
Ainda sobre a resposta à contribuição acima transcrita, os técnicos apontam o Concitiba como o único responsável pelo controle social do planejamento da cidade. A última pergunta, sobre as consequências caso o Plano não seja cumprido, não é adereçada. Em suma, a resposta do IPPUC é objetiva demais, dá conta do quem – embora não explique por que – e ignora o como funciona a fiscalização.
Na percepção do IPPUC, manter o conflito dentro de limites administráveis significa anular qualquer margem de diálogo. Impondo o saber técnico sobre o saber popular e reproduzindo a hierarquia verticalizada tal qual fez nas respostas às contribuições da sociedade no processo de revisão do Plano Diretor.

MB4

Note que o cidadão pede que se desenvolvam mecanismos e estratégias capazes de incentivar a participação, isso é dizer que a metodologia atual não lhe parecia satisfatória, ou, minimamente, não seria evidente. O pedido encaminhado pelo ator ao afirmar “para melhor divulgar as propostas aceitas no PD” significa que não ficou claro quais contribuições seriam contempladas na proposta de lei, dúvida essa que não foi sanada no decorrer do processo. O IPPUC, porém, se limita a apontar a realização das oficinas e outros fatos pretéritos, sem considerar o comentário como propositivo. No mesmo tom, à sugestão sobre a publicidade os técnicos contrapõem apresentando sua versão de “ampla divulgação”, reagindo ao que parecem ter recebido como crítica.
Em alguns casos, o IPPUC dá uma resposta padrão às contribuições, coisa que no tema da Gestão Democrática aconteceu em cerca da metade dos casos (34 das 71). Uma das respostas repetidas é a que segue:

MB5

Essa resposta se repetiu nove vezes, replicando o entendimento do IPPUC sobre participação. O texto considera que graças ao processo de revisão teria se operado um fortalecimento da gestão democrática da cidade e, em consequência disso, descarta a necessidade de avaliar o mérito da contribuição apresentada. Talvez a indicação da participação em conjunto com o poder público signifique para o IPPUC que é possível deslegitimar a vontade coletiva se os quadros técnicos, sob um argumento de autoridade, entenderem por bem fazê-lo.
Além de contribuições solicitando a autoconvocação de audiências públicas, a seguinte solicitação recebeu a mesma resposta padrão das anteriores:

MB6

Nesse caso a resposta do IPPUC fica fora de contexto, vez que a pergunta pede pela aplicabilidade do Plano Diretor e por planos setoriais na forma de lei, enquanto a resposta fala nos avanços já conquistados para a participação popular. O tempo, mais uma vez, é outro: a contribuição se preocupa com o futuro ao passo que o IPPUC indica o passado como resposta.
Sobre o mesmo tema da forma de lei dos planos setoriais,outra contribuição foi registrada no portal participativo, recebendo outra resposta que não a supracitada:

MB7

Aqui o encaminhamento do IPPUC é ainda mais unilateral. Primeiro porque a contribuição não se constitui em um elogio à metodologia do Plano Diretor, mas em uma proposta que deveria ter sido considerada. Os técnicos poderiam, pelo menos, ter feito referência ao dispositivo de lei que determina o trâmite do procedimento para embasar a afirmativa. Em segundo lugar, a resposta torna-se ainda mais antidemocrática na medida em que o projeto de lei apresentado pelo IPPUC e entregue à Câmara Municipal prevê os planos setoriais como atos administrativos, não como lei, contrariando a promessa feita pelo Instituto.
Essa resposta voltou a aparecer em outras quatro contribuições. Outra demonstração da atitude do IPPUC semelhante a essa foram as cinco aparições da resposta “A ideia central da sua contribuição foi contemplada na proposta de revisão”, revelando uma maneira de se desvencilhar do enfrentamento dos indicadores tal qual previsto na cartilha.
Outro exemplo de redação repetida em 10 respostas do IPPUC é a reação ao pedido de unificação do Concitiba e do Conselho Municipal de Urbanismo (CMU):

MB8

Aumentar as atribuições do Concitiba era uma das propostas defendidas pela Frente Mobiliza Curitiba para fazer face ao Conselho de Urbanismo, cujos membros são nomeados por decreto municipal. A resposta insiste no formato escolar sem considerar a sugestão proposta, revelando a concepção formalista de participação do IPPUC.
Quando o projeto de lei foi entregue à Câmara Municipal de Curitiba, o IPPUC apresentou dados numéricos, enfatizando a quantidade de audiências realizadas, de contribuições apresentadas; porém, os números ignoram a baixa qualidade da interação entre sociedade e poder público. Nesse movimento, o resultado fica muito aquém da diretriz da gestão democrática de “valorizar o papel da sociedade civil organizada e do cidadão como partícipes ativos e colaboradores, cogestores”. Faltou seriedade para que o processo fosse, na prática, à altura do pluralismo que no âmbito do discurso se pretendia.
Se o controle social é algo artificial, socialmente construído, então a versão de diálogo unilateral na qual basta registrar a interferência do ator sem analisar ou responder proativamente não dá conta dessa exigência estabelecida pelo Estatuto da Cidade. Para tornar o Plano Diretor participativo, os participantes deveriam ter sido levados a sério, diferentemente do que fez o IPPUC ao repetir respostas-padrão aos seus interlocutores. No que diz respeito à plataforma digital de participação, o modelo “A Cidade que Queremos” não se concretizou. Nesse espaço, o processo de revisão do plano reflete, em grande medida, a cidade que o órgão técnico da Prefeitura, e não a sociedade, quer.

*Assessora jurídica da Terra de Direitos 

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